Bendita criança interior : o passado no presente


“Livre filho das montanhas, eu ia bem satisfeito, da camisa aberta o peito – pés descalços, braços nus – correndo pelas campinas, à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras das borboletas azuis!” 
Casimiro de Abreu,
 no poema ‘MEUS OITO ANOS’

“Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão.”
Fernando Brant e Milton Nascimento, 
na canção ‘BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE’

“Benditas coisas que não sei, os lugares onde não fui, os gostos que não provei, meus verdes ainda não maduros, os espaços que ainda procuro... Posso brincar de eternidade agora sem culpa nenhuma.”  
Mart’nalia e Zélia Duncan,
 na canção ‘BENDITAS’



Quando criança querer crescer logo, na vida adulta desejar voltar a ser criança. Eis aqui um dos mais frequentes paradoxos da vida, como se a coexistência do ser adulto e do ser criança não fosse possível. Uma vez, com ar nostálgico, externou o poeta Casimiro de Abreu: “Oh! Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais.” Mas será que não trazem mais mesmo?

Eu fui daquelas crianças que aproveitou bem a infância. Como boa primogênita, sinto até que alonguei um pouco mais esse período dourado por conta de ter uma irmã mais nova. Já adolescente eu deixava de ir às festas da turma – que para mim eram sérias demais para a idade -  e preferia brincar. A minha geração, a “Y”, geração dos power rangers, das gelecas-melecas, dos ioiôs da Coca-cola, que era vidrada em  colecionar tazzos e “susto partes” da Família Addams, enquanto se deliciava com um pacote de batata Elma Chips (faço um apelo a quem não viveu na década de 90 que procure essas referências no Google e aqueles que viveram também, rememorá-las pode ser uma missão bem divertida).

Recordo bem que embora tenha escalado muita árvore, eu não era uma criança tão “raiz” a ponto de brincar na rua sozinha – a segurança segundo os adultos não era a mesma de antes, a rua significava risco, perigo e tomem nota que fui criada em Curitiba, onde a regra “não converse com estranhos” é super levada à risca – mas eu também não era tão “nutella”, apesar de ter presenciado o computador e a internet surgirem, o acesso à tecnologia ainda era algo mais restrito, limitado a softwares educativos que davam asas a imaginação, não era algo tão estrondoso quanto hoje e enquanto o universo digital não dominava tudo de uma vez, eu tinha uma polaroid para brincar de fotógrafa – sim, eu revelava momentos especiais – e apenas o fato de tatear aquele papel revelado já me fazia contente.

Um desses momentos captados foi um acampamento de dia dos pais, organizado pela escola. Opa! Acampamento não. Acampamento vírgula. Mentira. A verdade é que eu nunca acampei na vida, pelo menos não no meio do mato. Já disse que minha geração de piás e gurias de prédio nunca foi muito “raiz”, confere? E a escola gourmetizava o acampamento e o chamava de acantonamento, porque em vez de irmos para a floresta a gente acabava indo para o quartel, o que não deixa de ser uma aventura empolgante para todas as crianças. Lanternas nessas horas eram essenciais durante o caça ao tesouro! 

Ter uma lanterna era algo muito mágico. Imaginem, então, ter um microscópio. Taí algo que eu amava, brincar de cientista no laboratório da minha cabeça – que não era o de “Dexter” do CARTOON NETWORK – mas chegava bem perto. E assim a vida acontecia, um dia cientista, no outro bailarina, no outro-outro, uma cabana no escuro do meu quarto apenas com um “Pense Bem” ligado como “painel”, me fazia uma astronauta na nave – dando uma de historiadora, roteirista e cineasta também ao montar filminhos da Apollo 11 e da pegada do homem na Lua, a produção era incrível – e, por fim, no outro-outro-outro cantora. 

Com 7 anos não cantei, mas dublei “Pretty Woman” de Roy Orbinson, no palco da escola, era um teatro... Minha personagem era cantora, tinha uma banda e o microfone era de sucata (rolo de papelão revestido de papel alumínio – um show, um charme, um must, o máximo do máximo para uma criança). E apesar de toda essa mente fértil e dotes artísticos, eu era extremamente tímida, mas talvez me destacasse de alguma forma por esse universo criativo de brincadeiras infinitas que me fascinavam ... A escrita era deliciosamente uma delas! 

As histórias dos livros me levavam a vários passeios surpreendentes e inusitados. Na TV, desenhos como Doug Fany e Tim Tim me inspiravam, mas eram as séries que mais me encantavam: “Castelo Rá-Tim-Bum”, “Chiquititas” (estavam entre os mais populares a nível nacional) e eu também tinha uns gostos diferentes que nem sei se muita gente lembrará desses, lá vai: “O Fantasma Escritor”, “Kenan & Kel”, “Wishbone”, “Clarissa explica tudo”, “Irmã ao quadrado”, “As Aventuras de Shirley Holmes”, “Lendas do Templo Perdido”, o “O Mundo Secreto de Alex Mack” e “Sabrina, a aprendiz de feiticeira.”

Uma série, em especial, que era adolescente, mas que eu assistia quando criança, era “Confissões de Adolescente”, passava na TV Cultura, tinha uma vinheta de abertura fantástica acompanhada da canção “SINA” do Djavan – suspeito que minha paixão pela MPB começou cedo e foi nessa época. Mesmo criança, pelo meu jeito de ser, eu já me identificava com a personagem “Natália”, que tinha 16 anos. E, confesso que, do auto dos meus 6 anos, sonhava com o dia que tivesse essa idade: DEZESSEIS! E se Natália me despertava a vontade de querer ter 16 anos, a personagem “Carol” me fazia querer ser forte... e ter orgulho do meu nome! Até hoje tenho a sensação de que assistir a essa série era meio que uma felicidade clandestina para mim... Justamente por eu ser criança não assistia sempre, mas mantinha os olhos atentos ao futuro.

O tempo passou, voou. Alcancei o futuro. Fiz a travessia da infância para uma adolescência mais tardia ao meu ver. Fiquei mais forte. Fui flor. Fui árvore. Passei pelos 16 com a mesma doçura e romantismo da Natália – talvez não me dando conta disso – disso de tempo e de como ele passa a jato. E se um dia eu quis crescer, muitas vezes já tive vontade de voltar a fita. “É que a gente quer crescer e quando cresce quer voltar do início, porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido”(Kell Smith, na canção ‘Era uma vez’).

Em várias situações da vida julguei que o melhor a se fazer era deixar a minha criança interior de lado, controlar o riso frouxo, manter a face mais sisuda... como se virar a página da infância fosse sinônimo de maturidade, como se a vida adulta não fosse compatível com brincadeira alguma. Minha aquarela se descoloriu. Perdi o viço do olhar.

Meu filme ficou preto e branco. Mas a lembrança, aquela lembrança profunda da menina sonhadora que um dia fui jamais me abandonou, ela pode ter adormecido, resolveu tirar um cochilo no modo soneca por diversas vezes, mas um belo dia ela despertou de vez! Foi quando comecei a dar aulas de matemática, reforço escolar para crianças. Ao almejar uma ocupação enquanto cursava a faculdade de Engenharia Eletrônica, acabei deparando comigo mesma (só que na versão de ontem) e minha criança perdida foi, felizmente, reencontrada.

O lúdico, então, que habitava em mim na infância veio à tona novamente, tomando conta de mim na íntegra, reassumiu seu lugar. Reconectei-me com minha essência mais pura, voltei a usar lápis de cor, fazer origâmis – eu que sempre amei dobraduras. Conheci uma aluna, em especial, a Martina, que me fez acreditar na magia da vida novamente, que me fez enxergar a mim mesma nela, inúmeras vezes, e concluir que há espaço em nosso calendário para a criança interior de cada um, independentemente da sua idade. Isso que eu chamo de autêntica felicidade do passado no presente. Acabo de admirar uma borboleta azul pousada em meu nariz! 

“Eu fico com a beleza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita!”
(Gonzaguinha)


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