Senta, que lá vem minha história

  • Jornada da Escrita Amorosa - 2° DIA

Querida Carol de 2020, 

Primeiro recomendo que você se sente em um sofá confortável, ao lado de uma boa xícara de chá (ou cappuccino), porque a história é longa e não quero cansar ninguém. 


Uma grain de beauté (mais conhecida como pinta de beleza) no meio da barriga, que dali tentou ser retirada e dali não quis sair. Uma cicatriz quase imperceptível no canto da testa, prova de que médicos são bons ou de que a arte de escalar móveis e a existência de ventilador no teto do quarto não são nada compatíveis. Uma década inteira sem sequer ver a cor dos dentes ao fazer uso de aparelhos ortodônticos - um deles verde turquesa, que vinha do queixo à testa. O resultado foi bonito pelo sorriso faceiro de uma menina que sonhava ser apresentadora de TV e cantora, mas que mudou tantas vezes de ideia: cientista, bailarina, jogadora de vôlei, astronauta, modelo ou cineasta. 


Só nunca pensou em escritora. Só nunca cogitou que com a opção da escrita em vários tempos poderia ser tantas em uma só. Começou a escrever sobre experimentos de laboratório para a aula de Ciências do colégio, redigiu diversos relatórios diários. E, tentando imitar a mãe advogada, gostava de adotar palavras difíceis, vocabulário de gente grande emprestava uma digna seriedade aquele devaneio infantil. A mãe achou que a menina levava jeito para a coisa. 


O pai gostava de fazer vídeos caseiros das filhas, como se estivessem em um comercial do Cepacol e dizia à mais velha: "Seja uma líder, filha!"... ela não sabia bem ao certo o que líder significava e achava a figura do pai bem suspeita, afinal era seu pai. Mas sem se tocar, por influência ou por predestinação, a liderança já rondava sua vida. Ela gostava mesmo era de contar histórias e gostava de gente também. Reunir grupos era sua sina, fundar "clubes" com os amigos da turma... sem precisar forçar a barra, pois era sempre eleita a presidente - nessas horas as "profecias" do pai ("Seja líder!") se concretizavam. "Pai, preciso de crachás para os membros do clube." O pai não resistia, comprava a ideia e, carinhosamente, imprimia os crachás para a filha. Era um ritual todo mágico aqueles crachás chegando a sua casa, eram decorados, tinham certo mimo, um toque de arte. As crianças da escola faziam da brincadeira dela, a delas também! 



E assim a menina foi crescendo com uma personalidade tão forte, tão alegre, tão dela até... Até mudar de escola, quando veio a perda de identidade, a adolescência, o lado negro da lua com o bullying. Justamente nessa flor da idade, a bichinha se fechou com todas as carapaças possíveis. A sombra parecia interminável, a timidez também. Ela não se reconhecia ali naquele lugar, com aqueles colegas zombeteiros. Mas encontrou um alento no olhar de uma criança, que talvez lembrasse muito a pequena que ela um dia foi. E, em meio, às crianças, bem mais novas que ela, ela voltou a brincar, fazer origamis, ser criativa. 


Doou todos seus tazzos aos pequeninos, que em todo intervalo vinham ao encontro dela ávidos por novas histórias e novas artes. Gostava de ouvir as histórias deles também, frutos de suas imaginações férteis. Sentia-se de igual para igual com toda aquela pureza. As crianças eram autênticas que nem ela e conseguiam enxergá-la além. Essa era a diferença das crianças de 7 anos para seus colegas de 14. As crianças a defendiam das zombarias também. As crianças eram anjos (só podiam ser). O dia da despedida foi punk, mas necessário. Ela mudaria de escola, na tentativa de ser feliz com uma turma do tamanho dela. Àquelas crianças ela escreveu um texto em homenagem, chorou ao fim e para sempre as levou na memória. 


Um novo ciclo, ainda de aparelho, a menina debutou seu ensino médio encontrando semelhantes, ali encontrou sua turma e voltou a se sentir tão importante, tão pertecente, tão ela. Cultuando um amor secreto pela filosofia, pela oratória e por paixões platônicas, se moldou livre. Sentiu-se mais solta que nunca, a vida havia a libertado, enfim, para a escolha. Agora era a vez de ela decidir "o que ser quando crescer"... mas do que ela não se deu conta era que ela já era ALGUÉM. 


E sem saber que já era alguém, ela partiu meio-barata-tonta em busca de si mesma. Em busca de construir sua própria história, que já vinha sendo construída. Em busca de sua vocação, que se já não estava evidente... quem disse que precisava estar? Optou por odonto (provavelmente devido ao Cepacol e aos anos de chá de cadeira de dentista que carregava nas costas), no dia de assinalar o curso para o aguardado vestibular. Segunda opção: Medicina. "O quê, Medicina?! Surtei-surtado...devo estar louca! Não, nada a ver. Manhê, me empresta seu CPF, porque errei minha inscrição, errei feio aqui na opção do vestibular... adoro Biologia, mas na prática sei não. Direito já vou tentar na federal, mas me parece algo tão óbvio, tão previsível, na particular quero inovar... afinal vou fazer a prova só por fazer né, só para me testar, ver como estão meus conhecimentos. Meu caminho é certo: é Direito na federal e pronto(será?)" 


Acabou cursando Engenharia Elétrica por acidente. Acidente que durou quase meia década e a fez dar suas escapulidas para o mundo das letras, depois voltou várias casas no jogo. Cursou Direito, momento em que teve a felicidade de flertar com a filosofia outra vez. Dessa vez foi até o fim, tomou amor pelo caminho, se apaixonou mais vezes do que supunha ser capaz. Apaixonou-se inclusive por seus acertos imperfeitos e saudosos enganos que a fizeram cada vez mais humana nesse trilhar. Escritora? Talvez. Mas hoje, antes de mais nada, deseja ser PESSOA: encantada pela vida e por sua própria (e longa) história cheia de curvas, cheia de gente e de outras tantas histórias gostosas de se contar.  


Pronto, agora pode levantar. Estique-se, por favor... espero que esse chá de cadeira que dei em você tenha sido bem mais prazeroso que os meus chás nos dentistas.

Com carinho,
EU que sou VOCÊ.




carol gaertner ]




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